terça-feira, 28 de junho de 2011

As faces de Jesus

No primeiro século da era cristã, os judeus da Palestina não tinham sobrenome. Quando o prenome não bastava para a identificação, juntava-se a ele o local de origem – daí Jesus ter ficado conhecido como Jesus de Nazaré, a cidade da Galiléia onde foi criado. Pouco se sabe de sua vida. Jesus era pobre, mas não destituído. Abaixo de sua classe, a dos pequenos artesãos e agricultores, havia ainda uma legião de miseráveis. Numa atitude incomum em seu tempo, Jesus contemplou essas pessoas com compaixão destacada em suas pregações. Dedicou igual atenção às prostitutas, aos adúlteros, aos ladrões e à odiada categoria dos cobradores de impostos, símbolo da dominação romana sobre a Palestina.
Ao longo dos séculos, consolidou-se a idéia de que a palavra de Jesus foi como uma febre a varrer a Palestina. No entanto, de uma perspectiva estritamente histórica, tudo indica que não foi bem assim. A pregação do Nazareno provavelmente não durou um ano inteiro, e profetas não eram um artigo tão raro naqueles tempos. Os milagres, exorcismos, profecias e ensinamentos de Jesus atraíam muita gente, mas é provável que não se tratasse de multidões. Sinal disso é que, só alguns dias após sua entrada em Jerusalém para celebrar a Páscoa, Jesus foi preso, julgado e crucificado por Pôncio Pilatos. Na Páscoa, a guarda romana em Jerusalém se punha em alerta máximo – com a cidade repleta de gente inflamada por um festival religioso, era uma oportunidade quase certeira para rebeliões contra Roma. Se a comoção provocada pela chegada de Jesus tivesse sido excepcional, a reação teria sido imediata. Aos olhos de Caifás, o sumo-sacerdote judeu de Jerusalém que o denunciou, e do governador romano Pilatos, Jesus provavelmente não passava de mais um entre muitos indícios de instabilidade na região.
Como foi possível, então, que esse homem humilde e obscuro se convertesse na peça central da fé que mais tem adeptos em todo o planeta – cerca de 2 bilhões de cristãos, ou um terço da humanidade –, e que vem resistindo com surpreendente vitalidade às mudanças dramáticas por que o mundo passou nesses vinte séculos? Todas as respostas a essa pergunta têm de começar por um ponto crucial: o mundo de significados contidos na figura de Jesus, que parecem não se esgotar nunca, seja para seus fiéis, seja para os adeptos de outras religiões, que se viram inexoravelmente tocados por aquela que foi a grande força escultora da civilização ocidental.
O tempo de Jesus foi pródigo nos chamados profetas escatológicos – não no sentido que se dá hoje ao termo, claro, mas na acepção da palavra escatologia, que quer dizer "a doutrina das últimas coisas". Ou seja, a doutrina do fim dos tempos, uma parte fundamental do judaísmo nessa época. Também Jesus era um profeta escatológico e anunciava a instauração iminente do Reino de Deus na Terra. A diferença é que só de Jesus se disse ser o Filho de Deus. Desde os primeiros judeus que se converteram ao seu chamado, todos que o atendem ainda hoje o fazem por um ato supremo de fé: a crença de que Deus se fez homem (e nunca o contrário), como prova do amor por Seu rebanho.
Não custa lembrar que, no tempo de Jesus, só os judeus acreditavam num único Deus. Todo o restante da Antiguidade seguia magotes de divindades. Poder-se-ia presumir, portanto, que a pregação de Jesus só se dirigia aos judeus, e só interessaria a eles. Mas, durante os meses em que peregrinou pela Palestina, Jesus teve oportunidade de se indispor com todo poder político e religioso que houvesse ali. Pelo que se depreende dos Evangelhos Sinópticos – aqueles escritos por Marcos, Lucas e Mateus, que se julga serem a mais fidedigna fonte sobre a obra de Jesus –, o Nazareno nunca pediu fidelidade a si nem deu sinal de que pretendia fundar uma Igreja. Ao contrário, deixou claro que, para Deus, não havia eleitos: a salvação poderia pertencer a todos os que se arrependessem de seus pecados e que amassem não só o próximo, mas também seus inimigos. Mais do que fundar uma religião, o intento parecia ser o de formar uma comunidade em moldes inéditos. Para Helmut Koester, professor de estudos do Novo Testamento da Universidade Harvard, a fórmula de batismo com que se iniciam as Cartas de Paulo é, na verdade, uma fórmula sociológica. São Paulo escreve que em Cristo não há nem judeus nem gregos, nem homens nem mulheres, nem escravos nem libertos. "Aí está uma comunidade que convida a todos e que transforma todos em iguais, sem desvantagens", diz Koester.
Hoje é fácil enxergar a beleza da mensagem de Jesus, mesmo que não se acredite em sua origem sagrada. Por volta do ano 30, contudo, essa beleza tinha algo de subversivo. Ao Império Romano, não agradava que alguém andasse por seu território dizendo que o Reino de Deus era o único verdadeiro. À hierarquia religiosa judaica, também não soava bem que um jovem sem profissão ou título definidos fosse anunciado como o Filho de Deus – e mais ainda que convidasse imorais e gente de outras religiões a compartilhar desse Deus. Essas duas coisas já bastariam para fazer de Jesus um alvo. Mas ele tinha ainda, segundo os Evangelhos, o dom de operar imensos milagres, como curar leprosos, multiplicar os alimentos ou ressuscitar os mortos. Ou seja, sua fama crescia e suas palavras cada vez mais se faziam ouvir. Num acordo político nebuloso para os historiadores, o sacerdote Caifás e o governador Pilatos decidiram, então, condenar Jesus, que atraíra os olhares para si naquela Páscoa ao invadir o Templo de Jerusalém para desbaratar os comerciantes que trabalhavam ali. Num ritual destinado a produzir o máximo de humilhação, o Nazareno teve uma coroa de espinhos fincada em sua cabeça e carregou sua própria cruz até o monte chamado Gólgota, onde foi crucificado entre dois ladrões.
É certo que nem os doze apóstolos de Jesus esperavam por um desfecho tão trágico. Mas foi por causa desse fim prematuro e aparentemente inglório que, nos anos seguintes à morte de Jesus, um embrião de Igreja começou a surgir em torno dele. A razão está num dos maiores mistérios ligados a Jesus, e também um dos dogmas mais sagrados do cristianismo – a Ressurreição. São taxativos os relatos transmitidos pelos evangelistas de que, após sua morte, Jesus se fez ver em várias ocasiões por seus discípulos. De acordo com Lucas, na segunda vez em que apareceu, comeu até peixe assado. "Se Deus o fez ressurgir dos mortos, ele não era apenas um mensageiro divino, como seus seguidores provavelmente julgavam de início. Teria de ser o próprio Messias", explica o pesquisador Michael L. White, diretor de estudos religiosos da Universidade do Texas em Austin. Daí o título Cristo – em grego, "o ungido" – ter se agregado a seu nome desde cedo.
Séculos de debates teológicos ainda não deram conta de todas as implicações da Paixão e Ressurreição. Mas elas estão na essência da maneira como os cristãos enxergaram e enxergam Jesus no decorrer desses 2000 anos. A doutrina que foi se cimentando nos primeiros séculos da Igreja ensina que Cristo tem uma dupla natureza: é integralmente divino e integralmente humano. É divino porque é uma das três formas de Deus – a Santíssima Trindade, composta por Pai, Filho e Espírito Santo – e, como tal, existe desde antes da Criação. Jesus é, assim, Deus encarnado em homem, e por ser o Filho é que seu sacrifício tem poder para redimir toda a humanidade de seus pecados. Mas Jesus é também humano porque nasceu de uma mulher e viveu entre os homens. E, mais importante, porque se entregou à cruz com um temor e um coração humanos. A salvação, assim, não é algo a que só o Filho de Deus possa almejar, mas o ideal por que cada ser humano deve se nortear. A Ressurreição, por sua vez, confirma a crença na vida eterna e indica que os homens podem ganhar um lugar ao lado do Criador.
São tantas as facetas contidas nessa equação que não é de admirar que Jesus tenha adquirido representações tão diversas ao longo dos séculos – e que elas muitas vezes convivam no tempo, já que a cristandade nunca primou pelo caráter homogêneo. Nos primeiros séculos da Igreja, Jesus era quase sempre representado num trono, com uma esfera que simboliza o mundo nas mãos. Era o chamadoPantocrator, a palavra grega para "senhor de todas as coisas". Sob forte influência da filosofia helênica, o que se acentuava aí não era a dimensão humana de Jesus, mas, ao contrário, a sua majestade – a garantia de que o mundo seria regido por uma ordem eterna e superior. Talvez não por coincidência, esse era o momento em que o Império Romano se esfacelava e a sensação de caos institucional se aguçava – embora associações diretas entre os eventos históricos e a espiritualidade cristã quase sempre resultem em explicações demasiadamente simplificadas de uma coisa e de outra.
O interregno entre a Antiguidade e a Idade Média é um dos períodos mais obscuros da história da civilização. Mas o que emergiu dele, nos séculos XII a XIV, é um outro Jesus – o Cristo humano. Vêm dessa época as imagens de Cristo crucificado e a ênfase nas suas chagas, seu sangue e sua dor. Um emblema dessa guinada é São Francisco de Assis, que devolveu suas vestes ao seu pai rico e renunciou a todas as posses materiais. Atribui-se a Francisco a invenção do presépio, que é um conduto para esse Cristo de carne e osso – a criança, o pobre, aquele que partilha a condição humana no que ela tem de mais simples e humilde. É como se Francisco e as santas místicas como Catarina de Siena e Santa Brígida tivessem em Cristo uma pessoa próxima e amiga, uma figura de conforto à qual se ligavam de forma quase que afetiva.
Essa tendência a acentuar a concretude de Cristo teve um seguimento dos mais relevantes para a história ocidental com Santo Inácio de Loyola, que fundou a Companhia de Jesus, no século XVI. Para os jesuítas, que se tornariam altamente influentes tanto em assuntos religiosos como terrenos, o sentimento para com Cristo beirava o companheirismo. Os jesuítas se consideravam soldados de Jesus e o tinham como um modelo, ético e de vida, do qual todos poderiam se aproximar. Se essa noção parece moderna, não é por acaso. A espiritualidade cristã passava por um momento de descoberta do eu, do sujeito, e buscava um caminho para incorporá-lo à dimensão religiosa. No século XVII, São Francisco de Salles escreveu um livro de grande impacto, Introdução à Vida Devota, no qual defendia que não era preciso se recolher a um mosteiro para imitar Cristo. As pessoas que tinham família ou profissão na vida comum e não tencionavam deixá-las também podiam viver uma vida cristã plena. Com modificações e alguma simplificação, é essa a linha de pensamento que guia importantes correntes da atualidade, como o protestantismo liberal e o espiritismo kardecista. Jesus, para essas denominações, é fundamentalmente um exemplo ético – aquele que ensinou a praticar o bem e a solidariedade. Ou, no caso dos kardecistas, o mais iluminado entre os espíritos de luz e o comandante de um colegiado de espíritos encarregados de transmitir a sua boa-nova – é esse o significado da palavra evangelho. Não há dúvida de que esses são preceitos positivos. Mas eles se colocam relativamente à margem da tradição cristã por tirar de Jesus a dimensão mística que esta considera inalienável, a da ligação com o Pai.
Não é coincidência que a diocese de São Francisco de Salles ficasse na Suíça, onde então se desenrolava a Reforma Protestante. Ela aflorou na Europa por razões políticas e também como resposta ao anseio por uma espiritualidade mais interiorizada, sem o exagero de festas, procissões e sinais de fé quase sempre exteriores que marcaram o cristianismo medieval. Por causa disso, e também por causa da revolta contra a riqueza da Igreja Católica, luteranos, calvinistas e as várias outras correntes protestantes viriam a se desfazer de símbolos que, em seu entender, haviam nascido da instituição, e não da religião. Pode-se até dizer que os protestantes viam na profusão de santos, imagens e crucifixos e na imensa devoção católica à figura da Virgem Maria um quê de panteísmo. Tudo isso foi recusado pelo protestantismo, que passou a se pautar por ideais de austeridade absoluta e por uma consciência aguda do pecado, num ideal de renúncia que sempre foi uma forte inspiração dentro do cristianismo.
Um dos aspectos mais impressionantes do cristianismo é a maneira como ele se misturou à trama das civilizações – quando não é o próprio fio de que elas foram tecidas. Num mundo pós-11 de setembro, em que as tensões entre o Ocidente e o mundo muçulmano se tornaram tão acirradas, pode ser difícil imaginar que a figura de Jesus seja um dos tijolos do islamismo. Mas Maomé, o grande profeta do Islã, costumava se retirar no deserto para refletir sobre os ensinamentos de Cristo, e tanto este quanto a Virgem Maria são citados em vários pontos do Corão, o livro sagrado do islamismo. Os seguidores de Maomé não acreditam que Jesus seja o Filho de Deus, já que o Corão diz que Alá não gerou nem foi gerado, e repudiam a Santíssima Trindade, que violaria o conceito da unicidade de Deus. Mas consideram Jesus um dos grandes profetas e admitem a concepção imaculada – Maria teria engravidado de Cristo, ainda virgem, por intercessão divina. Os muçulmanos também aguardam a volta de Jesus, mas não crêem na crucificação. Segundo eles, Alá teria poupado Cristo, fazendo com que aqueles que olhassem para a cruz vissem seu rosto no de um outro homem. Essas diferenças teológicas mais séculos de hostilidades, das quais as Cruzadas são um dos ápices mais trágicos, fizeram os caminhos de cristãos e maometanos divergir, mas não suas perspectivas sobre a religião como instrumento de fraternidade.
Como no caso das Cruzadas ou da Inquisição medieval, em que os padres atiravam à fogueira os suspeitos de heresia, os pecados da Igreja Católica muitas vezes se confundiram com a fé cristã. Mas apenas momentaneamente. O cristianismo tem mostrado uma resistência espetacular, e se recompõe a cada revés ou ataque. "Apesar de toda a decadência da Igreja, Jesus Cristo nunca foi perdido", observa o teólogo suíço Hans Küng, que participou do Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965, e anos mais tarde se indispôs violentamente com a instituição. "O nome de Jesus Cristo é como um fio de ouro na tapeçaria da história da Igreja. Embora muitas vezes a tapeçaria esteja rota e encardida, aquele fio é sempre usado de novo", completa Küng. Como na parábola, Jesus sempre tem outra face a oferecer.
Poucos episódios ilustram tão bem essa perenidade quanto os golpes desferidos contra a religião pelo iluminismo, nos séculos XVIII e XIX, e os subseqüentes movimentos racionais e materialistas. Quanto mais se sofisticavam os métodos de pesquisa histórica e mais se afinavam os instrumentos da filosofia, menos lugar parecia haver para o dogma e os atos de fé. Tudo aquilo que está no Novo Testamento era tido como de origem duvidosa. Chegou-se a dizer que a existência de Jesus – hoje amplamente comprovada – era uma fraude. As marcas deixadas por essa maré foram profundas. O protestantismo se abriu para algum questionamento, a separação entre Igreja e Estado se consumou em todo o mundo ocidental e, nos países que adotaram regimes socialistas, as religiões foram proibidas. Mas o mundo cristão não encolheu. O padre Alberto Antoniazzi, teólogo e diretor do projeto Pastoral de Belo Horizonte, lembra-se de uma passagem ilustrativa: "Em 1850, o francês Auguste Comte sonhava que, em poucos anos, ele pregaria o racionalismo na Catedral de Notre-Dame. Mas o iluminismo não deixou de ser um fenômeno restrito a algumas elites, e Notre-Dame continua consagrada. Comte, enfim, se mostrou um mau profeta".
Abolir a fé cristã, como desejava Comte, é uma operação impossível, por obra da riqueza de significados de Jesus. Basta dizer que, no século XIX, ele inspirou vários movimentos de operários, que viam em Cristo o primeiro socialista. É uma espécie de licença poética, ou política, que na história recente foi adotada também pela Teologia da Libertação, uma ala de esquerda da Igreja Católica que floresceu durante o apogeu das ditaduras latino-americanas. Trata-se de uma licença porque, embora Jesus de fato tenha visado a instaurar relações humanas mais solidárias, ele sempre o fez pela ótica da reforma religiosa. A mensagem dos Evangelhos é clara: os homens devem amar-se uns aos outros porque essa é uma forma imprescindível de manifestar o amor a Deus. Essas visões corretas, mas incompletas, de Cristo são um dos maiores desafios que a cristandade enfrenta hoje. Quantas vezes, por exemplo, não se ouve alguém pedindo a ajuda de Jesus para os assuntos mais banais? No trato popular, ele virou quase que um intercessor entre os crentes e uma esfera que mal-e-mal se poderia chamar de divina. "É humanamente compreensível, claro. Mas o que a Igreja quer é que Jesus seja um exemplo, e não um orixá a mais", diz o padre Antoniazzi.
Mesmo correntes que vieram engrossar os cordões do cristianismo em tempos recentes não escapariam a essas críticas. A ênfase, hoje, se coloca sobre a festa, o louvor e a celebração. São sentimentos legítimos. Mas, para quem deseja compreender Cristo com algum equilíbrio, eles não podem se manifestar em detrimento de outros, menos prazerosos. Também fazem parte da experiência de Jesus o recolhimento, a dor, a penitência e a abnegação. Estes, porém, andam em franco desuso, e a causa pode ser mais cultural do que espiritual. O despreparo para lidar com a contrariedade é um efeito perverso da atual capacidade do homem de dominar seu mundo. Assim como qualquer amenidade tecnológica, espera-se que Deus nos sirva e nos seja fiel, quando o sentido da cristandade sempre esteve no contrário.
No reverso da medalha, a liberdade para abraçar a fé como uma opção pessoal, e não como uma imposição, é uma conquista a ser comemorada. Ela é um caminho para uma espiritualidade nascida da convicção e capaz de devolver ao homem uma dimensão que não raro é triturada por uma sociedade que valoriza tanto o poder e a eficácia. Sem essa liberdade, não haveria também o ecumenismo, ao qual o Concílio Vaticano II promovido pelo papa João XXIII dedicou tanta atenção no início dos anos 60, no intuito de reafirmar a supremacia do Evangelho sobre os detalhes da liturgia. Quando protestantes, católicos, ortodoxos e todos os outros cristãos dão mais valor àquilo que os une do que às barreiras que os separam, pode-se imaginar o sentido de comunhão propiciado pela expressão "irmãos em Cristo", com que os primeiros convertidos se saudavam. O significado é ainda maior quando as celebrações envolvem cristãos, judeus, muçulmanos, budistas ou quem mais queira se juntar a elas: trata-se de reconhecer que os caminhos, embora diversos, visam a levar a um mesmo destino. Como lembra o americano Wayne A. Meeks, professor de estudos bíblicos da Universidade Yale, é mais ou menos isso que imaginava Paulo de Tarso, um judeu que se converteu ao ter uma visão de Jesus. Fundador, junto com São Pedro, da Igreja cristã, São Paulo estava convencido de que, nos planos de Deus, a separação entre judeus e gentios não poderia ser permanente. Os fatos provam, contudo, que essa união só é possível no campo da ética. Para os judeus, a idéia de que Deus tenha sacrificado Seu filho na cruz, ou que um inocente deva morrer pelos pecados de outros, é inaceitável. Nos meios judaicos mais liberais, que não rejeitam o cristianismo como uma religião espúria, Jesus é, no entanto, objeto de respeito como pregador dos ideais universais da fé judaica, e seus ensinamentos são refutados apenas na medida em que conflitam com as escrituras.
Tanto São Paulo como São Pedro foram torturados e executados em Roma, numa das inúmeras levas de perseguição promovidas pelo Império nos primórdios da era cristã. Milhares de outros cristãos menos ilustres tiveram um fim idêntico, na maioria das vezes sem que isso os demovesse de testemunhar sua fé em Cristo. Essa determinação levanta uma questão fundamental: o que, afinal, há de tão particular nessa crença que levou tanta gente a, em nome dela, arriscar-se ao ostracismo social e até à morte dolorosa? O sociólogo Rodney Stark dedicou um livro, A Ascensão do Cristianismo, a responder a essa pergunta, e chegou a conclusões que são motivo de regozijo para boa parte daqueles que viveram nesses dois milênios seguintes ao advento de Cristo. Stark lembra que, aos olhos atuais, os deuses pagãos da Antiguidade parecem entidades triviais. Seus poderes e preocupações tinham limites meio ridículos, e sua moral era duvidosa. Conforme acreditavam seus seguidores, os deuses brigavam entre si e pregavam peças de mau gosto nos homens. Para um pagão, a noção de que um deus poderia amar o mundo ou se preocupar com a maneira como os seres humanos tratam uns aos outros soaria absurda. Nunca, no mundo antigo, uma religião formulou um preceito como o que norteia o judaísmo e o cristianismo – o de que Deus ama aqueles que O amam. Ao contrário, a filosofia clássica dizia que a misericórdia era um defeito de caráter. Por conferir alívio sem que algum preço tivesse sido pago por ele, ela seria contrária à justiça. Para ir da teoria à prática, basta dizer que esse era um tempo em que se festejava o aniversário do filho do imperador lançando homens e mulheres às feras, para deleite do menino e da plebe.
Foi nesse clima, que hoje apreendemos como abominável, que Jesus trouxe o ensinamento de que a misericórdia e a caridade são virtudes cardeais, e que não é possível agradar a Deus a não ser que nos amemos uns aos outros – não só à família, à tribo ou aos cristãos, mas também aos que estão fora desse círculo e porventura sejam nossos inimigos. Aí estava uma idéia revolucionária, diz Stark, à qual valia a pena se agarrar no brutal mundo romano. Os cristãos transformaram em metáfora o seu desejo, herdado do judaísmo, de ser um único povo sob um único Deus. Puseram-se a demolir as infinitas barreiras étnicas (e os ódios acarretados por elas) do Império Romano, para receber todo e qualquer convertido em suas fileiras. Com isso, conceberam uma cultura sem raça, de tons cosmopolitas. Essa herança permanece. Dentre as grandes religiões praticadas hoje no planeta, o cristianismo é a única que não está primariamente vinculada a traços étnicos. O mundo cristão foi, por assim dizer, o primeiro mundo globalizado da história da humanidade.
Rodney Stark afirma ainda que o cristianismo modulou as diferenças de classe e de sexo que eram tão gritantes na Antiguidade. O uso do "irmãos em Cristo", proferido mutuamente por nobres e escravos, homens e mulheres, não era mera retórica. Desses costumes nasceram a solidariedade e a noção de assistência social (além de um embrião de democracia popular), que hoje é tão cara ao mundo civilizado. Foram os cristãos – ainda na condição de proscritos – os fundadores dos primeiros hospitais e asilos. Quando o cristianismo já era a religião oficial do Império – condição que alcançou com a conversão do imperador Constantino, em 313 –, o papa Gregório Magno fez do assistencialismo uma prioridade, empregando as doações dos poderosos para criar um ambiente de estabilidade social que os próprios governantes não eram capazes de proporcionar. Acima de tudo, porém, o cristianismo trouxe uma nova moral a um mundo saturado de crueldade casual e de paixão pela morte alheia, nas palavras de Stark. Uma moral que conferiu aos homens sua humanidade e na qual a virtude é a sua própria recompensa – sob cuja égide ainda vivemos, independentemente de crença, e que ainda estamos muito longe de alcançar plenamente. Está aí uma prova cabal de modernidade. 

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