terça-feira, 28 de junho de 2011

A morte

Reportagens



12 de abril de 1995
A morte de Jesus
Quem matou? Por quê? Como?
Uma volta à Palestina de 1.965
anos atrás, na companhia de
respeitados especialistas, com
atenção especial ao problema
da culpa dos judeus
Madrugada de quinta para sexta-feira, arredores de Jerusalém, Palestina ocupada. Lá vem ele. Acompanha-o uma turba armada "de espadas e paus", segundo um dos principais cronistas do evento. Sua vítima o espera, cheia de angústia. Quando os dois se encontrarem, vai-se dar a mais desprestigiosa utilização que uma saudação geralmente tida por amistosa já conheceu. O mesmo cronista informa que o homem que vinha chegando combinara com a turba: "É aquele que eu beijar. Prendei-o e levai-o bem guardado". Num beijo se concentrará a torpeza sem nome da traição! Nosso cronista, conhecido apenas por um prenome, Marcos, prossegue: "Tão logo chegou, aproximando-se dele, disse: 'Rabi!' E o beijou. Eles lançaram a mão sobre ele e o prenderam".
Que havia nesse beijo, o mais escandaloso da História do mundo, ocorrido há mais ou menos 1.965 anos, com o qual o vil aventureiro chamado Judas entrega Jesus? Ou, para colocar a questão nos termos de um dos maiores especialistas nos evangelhos, o padre americano Raymond E. Brown, "no nível da História ou da verossimilitude, como se deve entender o beijo de Judas?" Brown responde:
"Se o beijo era uma saudação normal, que podia ser usado por qualquer conhecido, ou uma saudação costumeira entre Jesus e os discípulos, então ele poderia convir à trama daqueles que tinham pago Judas para evitar uma resistência ruidosa e conseqüentemente ao desejo de Judas de parecer normal. Se não era uma saudação normal, mas um gesto incomum, implicando especial afeição, então Judas era um hipócrita malévolo".
Em nenhum outro lugar dos evangelhos Jesus e os discípulos são mostrados trocando beijos, mas esse silêncio "pode ser acidental", escreve Brown. Ele se inclina para a hipótese de que o beijo era uma saudação normal, e Judas o aplicou para não parecer suspeito. Contra essa tese há uma objeção forte: se Judas acabara de estar com Jesus, na última ceia, por que saudá-lo de novo? Mas, conclui Brown, "a freqüência das saudações normais, por exemplo, o aperto de mão, varia grandemente entre os povos; e temos muito pouca idéia de quão freqüentemente os palestinos as trocavam".
Transcrevem-se aqui as conjeturas sobre o beijo para exemplificar o nível de minúcia a que podem chegar os estudiosos de um texto como o de Marcos. Qualquer texto oferece possibilidade de discussão. Quanto mais valha a pena, mais fecunda será sua dissecação, seja por que ótica for - gramatical, literária, histórica, filosófica, sociológica, psicológica, antropológica ou teológica. Ao longo dos últimos vinte séculos, no entanto, nenhum texto foi objeto de tanta dissecação, e tanta discussão, quanto os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João, os autores canônicos, ou seja, "oficiais", da cristandade. E, dentro dos evangelhos, nenhum trecho despertou tanto interesse, tanta emoção e discussão quanto a paixão e a morte de Jesus, que os cristãos comemoram a partir desta quinta-feira, na Semana Santa.
Não há relato tão longo e detalhado, nos evangelhos. A infância só é abordada por dois evangelistas, Mateus e Lucas, e sumariamente. A parte do ministério de Jesus é uma coleção de pequenos episódios biográficos, milagres e parábolas. Já a paixão tem começo, meio e fim. Cada evangelista apresenta detalhes exclusivos - só Mateus dá conta da morte de Judas, por exemplo, e só João reproduz um longo diálogo entre Jesus e Pilatos. Apesar disso, com ligeiros desvios em João, que é o evangelho mais diferente, há uma seqüência comum - delação, prisão, julgamento pelas autoridades religiosas judaicas, julgamento pela autoridade romana, execução e enterro, com episódios de zombaria de Jesus intercalando algumas dessas cenas. Tudo somado, está-se diante de uma peça de insuperável força dramática.
Com o beijo de Judas, estamos entrando nesse universo misterioso. E logo impõe-se a pergunta: o beijo existiu, de verdade? Acompanhe-se o raciocínio de um segundo autor, o israelense Haim Cohn. Jesus tornara-se conhecido em Jerusalém, onde tinha entrado triunfalmente, montado num asno. Diariamente estava no Templo, pregando. Então, por que alguém precisaria identificá-lo e entregá-lo? Prossegue Cohn: "A explicação em geral apresentada para tornar plausível a história é a de que os principais sacerdotes tinham muito medo do clamor popular". Por isso, determinaram prendê-lo à noite, e fora da cidade. No entanto, argumenta o autor, o evangelho de Lucas informa que toda noite Jesus ia ao "monte chamado das Oliveiras". O evangelho de João o confirma. As autoridades não precisariam de informante para apanhá-lo. Para Cohn, a história da traição de Judas é "tão improvável, tão incongruente", que "não merece crédito".
Um terceiro autor, o irlandês radicado nos Estados Unidos John Dominic Crossan, tem uma posição mitigada. Ele aceita que Jesus tenha tido um seguidor chamado Judas, e que esse seguidor o tenha traído. Mas não aceita a cena do beijo, cuja intenção, a seu ver, é apresentar Judas em cores caricatamente cruéis. Crossan lança uma hipótese: Judas teria sido preso antes de todos, durante uma ação da qual se falará adiante, e teria delatado Jesus.
Judas é o ponto de partida. Este artigo seguirá a paixão e a morte, tendo por baliza três perguntas: quem matou Jesus? por quê? como? Advirta-se de antemão que não há respostas conclusivas. O que se apresentará são as teses dos eruditos. Especificamente, vai-se seguir a trilha de três livros, dos três autores já citados. O primeiro é The Death of the Messiah (A Morte do Messias), um monumental estudo de 1.600 páginas e dois volumes lançado no ano passado nos Estados Unidos (Doubleday) pelo padre Raymond Brown, professor da Union Theological Seminary, de Nova York. O segundo é Who Killed Jesus? (Quem Matou Jesus?), que John Dominic Crossan, antigo padre, hoje professor de estudos bíblicos da Universidade DePaul, em Chicago, lançou há poucas semanas, também nos Estados Unidos (HarperSan Francisco), em resposta ao livro de Brown. O terceiro é O Julgamento e a Morte de Jesus, de Haim Cohn, um livro de 1967, lançado no ano passado no Brasil (Imago), que apresenta a originalidade de o autor ser judeu e ter ocupado os cargos de procurador-geral e, depois, juiz da Suprema Corte de Israel.
Daquilo que está nos evangelhos, o que realmente aconteceu? Não é à toa que esta é a pergunta mais recorrente, nesta matéria. Tem-se repetido sempre que o cristianismo é uma religião histórica, no sentido de que se apóia não em um deus ou deuses mitológicos, mas numa figura de existência real, que viveu numa determinada parte do globo, num determinado período, e teve sua trajetória condicionada pelas circunstâncias da época e do local. Brown, no entanto, adota uma abordagem que em primeiro lugar investiga o que o evangelista quis exatamente dizer - quais as tradições que inspiraram seu texto e que mensagens ele procura transmitir. Segundo ele, a "obsessão com a história" pode constituir uma "obstrução ao entendimento dos evangelhos". A intenção dos evangelistas, lembra ele, era evangelizar, e Brown não exclui que, para isso, se tenham utilizado de variados recursos - inclusive a ficção.
Os evangelistas, pessoas que mal se sabe quem são, e onde viveram, não trabalharam com informações de primeira mão. Há um consenso entre os eruditos, hoje, de que seus trabalhos datam de no mínimo quarenta anos depois da morte de Jesus, sendo o mais antigo o de Marcos (escrito por volta do ano 70 a.D.), e o mais novo o de João (cerca de 110 a.D.). Nas narrativas da paixão, os evangelistas incluíram personagens e situações inesquecíveis - as negações de Pedro antes de o galo cantar, os sumos sacerdotes Anás e Caifás, o bom e o mau ladrão - e uma bomba-relógio. A bomba-relógio são as fortes acusações contra os judeus, tratados como responsáveis pela morte de Jesus. Ela foi estourando com intensidade variada ao longo dos séculos. Na Idade Média, segundo informa o livro de Brown, cultivava-se em Toulouse, na França, uma cerimônia da paixão durante a qual um judeu era trazido à catedral para receber um soco do conde da cidade. Houve práticas mais atrozes, como se sabe. Crossan escreve: "O que estava em jogo nas narrativas da paixão, no longo curso da história, era o Holocausto judeu".
A própria figura de Judas tem a ver com o que se está dizendo. Seu nome, nota Brown, é etimologicamente ligado a "judeu". Na arte, muitas vezes, carregaram-lhe os traços considerados "semitas". Seu gosto pelo dinheiro foi generalizado para um povo. Santo Agostinho sustentava que, enquanto Pedro representa a Igreja, Judas representa os judeus. A história da Paixão tem duas vítimas, como se mostrará nas páginas seguintes. Jesus é uma. O povo judeu é a outra.

Julgamento
Primeiro as autoridades judias, depois
Pilatos, condenarão o réu. Quem
entre esses dois merece a maior culpa?
Estamos agora no palácio do sumo sacerdote. O preso é levado para dentro. O discípulo Pedro, que o acompanhara a distância, fica no pátio, aquecendo-se ao fogo com os criados. A noite é cheia de presságios.
Os quatro evangelhos reportam que, uma vez preso, Jesus foi levado às autoridades judaicas. Marcos e Mateus, claramente, e Lucas, com menos clareza, dão conta de um julgamento, pelos dignitários judeus, ao fim do qual Jesus será condenado à morte. João relata um interrogatório, sem julgamento, mas já informara antes, quando da ressurreição de Lázaro, que o Sinédrio condenara Jesus à morte. Existiu ou não o julgamento judaico? Este é um dos pontos mais controvertidos da paixão. Haim Cohn aceita que o Sinédrio se tenha reunido, mas não para julgar, e muito menos para condenar. Mas então para quê? Por que razão teriam os membros do mais alto corpo judaico, pessoas importantes da sociedade, se dado ao trabalho de sair de casa àquela hora da noite, e ainda por cima num dia festivo?
Retomemos a tese cheia de suspense de Cohn. "O fato de que o Sinédrio teria sido convocado naquela noite particular para uma reunião na residência do sumo sacerdote e devesse, em última instância, passar ali longas horas até a manhã seguinte exige explicação muito forte e convincente para ser crível", escreve ele. A conclusão do autor israelense é que só pode haver uma coisa na qual toda a liderança judia estava interessada: "Impedir a crucificação de um judeu pelos romanos e, mais particularmente, de um judeu que gozava do amor e afeição do povo". Segundo Cohn, o Sinédrio reuniu-se não para condenar, mas para salvar Jesus!
Não que as autoridades judaicas morressem de amores pelo pregador da Galiléia. Mas, partindo da premissa de que Jesus era popular, Cohn afirma que o Sinédrio precisava tentar alguma coisa em seu favor, sob pena de cair em desgraça perante o povo. Tendo sabido que ele seria levado na manhã seguinte à máxima autoridade romana, e com toda a probabilidade sofreria uma condenação à morte, resolveu agir rápido. Primeiro conseguiu autorização para que sua polícia participasse da prisão. Depois, que o trouxesse à sua presença. Enfim, trancado com Jesus, tentou duas coisas: instruí-lo sobre o que responder no tribunal do governador e persuadi-lo a colaborar com o alto comando judaico. Jesus recusou-se a aceitar uma parceria com o Sinédrio, porém, o que implicaria a renúncia a seus pontos de vista dissidentes, e todo o esforço foi perdido.
Como encarar a tese de Cohn? Brown, ao referir-se a ela em seu livro, descarta-a como "ficção benevolamente imaginativa". Não há nenhuma tradição judaica antiga, argumenta ele, que coloque em dúvida o envolvimento de autoridades judias na morte de Jesus. A veracidade do julgamento judeu tem sido contestada por argumentos que vão das questões procedimentais, como a realização de um julgamento noturno, quando a jurisprudência universal os recomenda à luz do dia, até o fato mais desconcertante de os evangelhos darem conta de dois julgamentos, um judeu e outro romano - por que tal sobreposição, com que fim e com que lógica? Brown responde, quanto ao primeiro ponto, que o julgamento ter sido à noite é coerente com o que dizem os evangelhos - que não foram oferecidas as garantias de praxe ao réu. "Marcos informa que as autoridades judias o queriam preso e levado à morte em segredo, e com tão pouca atenção pública quanto possível", escreve Brown. "Procedimentos noturnos convêm a isso muito bem."
Para a bizarra duplicação dos julgamentos, alguns oferecem a explicação de que o procedimento judeu teria sido uma investigação preliminar, não um julgamento. Outros, no sentido inverso, afirmam que coube aos romanos apenas executar uma sentença judia. A chave para o entendimento da questão estaria num diálogo reportado por João, quando Pilatos, não encontrando razões para assumir o caso de Jesus, diz aos judeus: "Tomai-o vós mesmos e julgai-o conforme a vossa lei". Os judeus respondem: "Não nos é permitido condenar ninguém à morte". Será que os judeus não podiam executar penas de morte? Estamos no intrincado território das competências entre a Justiça romana e a judaica. Brown argumenta que em alguns casos de clara inspiração na lei religiosa, como a proibição de circular em determinadas dependências do Templo, e talvez adultério, os judeus poderiam executar eles mesmos a sentença. Em outros, de interesse para a sociedade como um todo, eles teriam de repassar o caso à autoridade romana, que resolveria se caberia ou não a pena de morte.
As acusações contra Jesus no julgamento judeu foram as de proferir ameaças de destruição do Templo e autoproclamar-se o Messias. Brown comenta, sobre a primeira das acusações, que "o Templo era a instituição-chave da vida cívica e religiosa na Judéia e o tesouro da nação". Portanto, ações contra ele "iam além do interesse teológico, para atingir os reinos da sócio-economia e da política", e é bastante plausível que provocasse nas autoridades letal hostilidade. Estamos a alguns passos da tese de Crossan, de que Jesus caiu em desgraça por promover desordens no Templo, mas Brown não dará esses passos.
O fato é que apenas dois evangelistas, Marcos e Mateus, referem-se claramente à acusação pertinente ao Templo, e todos reportam a segunda acusação - a pretensão de Jesus a ser o Messias, ou o Filho de Deus. E é por admitir sê-lo, segundo Marcos, acompanhado por Mateus, que Jesus será condenado pelo tribunal judeu, pois sua pretensão messiânica foi considerada blasfêmia. Cohn afirma que blasfêmia, para os judeus, era apenas, e estritamente, pronunciar o tetragrama, o nome proibido de Deus, e se não há notícia de que Jesus o tenha feito, então ele não pode ter sido condenado por esse crime. Além do mais, blasfêmia é crime puramente religioso, que poderia ser punido pelos próprios judeus - e por apedrejamento, como impõe a Bíblia, não na cruz. Já Brown considera verossímil que Jesus tenha sido condenado por blasfêmia, crime que, para ele, neste caso tipificou-se pela "reivindicação arrogante de prerrogativas ou status mais propriamente associados a Deus".
Encerrados os procedimentos judeus, Jesus foi levado pela manhã a Pilatos. Quem era esse governador romano, tão célebre que entrou no Credo, garantindo-se, com sua participação nesse episódio, uma memória histórica com que nem de longe a carreira mediana lhe faria supor? Um documento que se tem sobre ele é uma carta do dirigente judeu Herodes Agripa ao imperador Calígula, cerca de dez anos depois da morte de Jesus. Diz Agripa que Pilatos era "naturalmente inflexível e implacável", e cometia atos de "corrupção, de insulto, de rapina, de ultrajes ao povo, de arrogância, assassinatos de vítimas inocentes e da mais violenta selvageria". Haim Cohn considera esse documento o mais fidedigno entre os que dão conta da personalidade de Pilatos.
Brown, mais uma vez, oferece uma visão inversa, a partir de um episódio relatado pelo historiador judeu antigo Flávio Josefo. Uma vez Pilatos enviou a Jerusalém uma tropa levando estandartes com a efígie do imperador Tibério, algo considerado sacrílego pelos judeus. Estes organizaram expedições à cidade costeira de Cesaréa, onde residia o governador, para protestar e exigir que ele removesse os estandartes. As manifestações se sucederam dia após dia. No sexto, Pilatos ameaçou matar os manifestantes. Estes deitaram-se no chão, dispostos a morrer. Admirado com a determinação dos judeus, Pilatos voltou atrás e mandou remover os estandartes. Brown comenta que o incidente "não sugere um tirano teimoso até a selvageria", e conclui que os evangelhos podem ter pintado um Pilatos não distante da realidade, ao mostrá-lo como um juiz tolerante, disposto a dar uma chance ao réu.
Perante o governador romano, a acusação messiânica transmuda-se para o plano temporal. Agora Jesus é acusado de pretender-se "o rei dos judeus". "Sob a lei romana, isso devia parecer sedição", escreve Brown. Muitos eruditos concordam que Jesus pode ter sido enquadrado na famosa Lex Iulia de Maiestate, ou seja, considerado culpado de crime de lesa-majestade.
A cruel questão da culpa judaica não se exprime apenas na condenação pelo Sinédrio. Mais polêmica ainda é a participação que é conferida à "multidão", incitada pelos "chefes dos sacerdotes e os anciãos", segundo Marcos e Mateus, ou os "judeus", pura e simplesmente, como quer João, no julgamento romano, interferindo agressivamente, e levando um relutante Pilatos a condenar o réu. "Que farei de Jesus, que chamam de Cristo?", pergunta Pilatos. As "multidões", segundo Mateus, respondem: "Crucifiquem-no". Em João, em cenas de elaborada dramaturgia, Pilatos alterna diálogos filosóficos com Jesus, sobre a verdade e o reino deste mundo e do outro, com exortações ao populacho para que perdoe o réu. Não adianta, os "judeus" estavam-se inflexíveis: "à morte! à morte! Crucifica-o!"
Cohn aponta várias estranhezas, no episódio. Primeira: que fez com que os "judeus" ficassem tão hostis a Jesus, eles que o haviam recebido em triunfo em Jerusalém havia alguns dias? Segunda: como aceitar que um "onipotente governador romano" se sujeitasse a ficar pedindo aos nativos "conselho sobre como tratar um criminoso preso", e ao tomar a decisão se deixasse arrastar pelos "apelos populares histéricos"? Cohn considera o episódio "demasiado grotesco" para merecer crédito, mas Brown acredita em sua plausibilidade. O padre americano traça o cenário seguinte: "Pilatos suspeita que a verdadeira questão seja um assunto religioso judaico, de interesse interno, e não um crime político contra a majestade do imperador. A multidão pressiona Pilatos; e ele não deseja que o caso resulte num outro tumulto em Jerusalém, ainda mais no contexto de um festival de Páscoa". Daí ele ter-se sujeitado à pressão popular, da mesma forma que o fizera no caso dos estandartes com a efígie do imperador.

Momento mais célebre da trajetória de Pilatos na história e no imaginário universais é quando ele lava as mãos. "Estou inocente desse sangue. A responsabilidade é vossa", diz. Trata-se de um gesto não romano, mas judeu. Está na Bíblia que, quando morre um inocente que não se sabe quem matou, os principais do lugar devem lavar as mãos e declarar-se inocentes daquele sangue. Brown, que geralmente tende a dar plausibilidade à letra dos evangelhos, dessa vez não vai por esse caminho. O pagão Pilatos, nesse momento, escreve ele, "age e fala como se fosse um leitor do Antigo Testamento e um seguidor dos costumes legais judaicos". Outro momento ao qual Brown não empresta seu veredito de plausibilidade é quando Pilatos oferece a opção entre soltar Jesus ou o bandido Barrabás, segundo um suposto costume de soltar um preso na Páscoa. Não havia tal costume, conclui Brown, de acordo com a quase unanimidade dos eruditos, e mesmo se houvesse seria pouco sensato que o governador soltasse um homem que acabara de ser preso por homicídio durante um tumulto, caso de Barrabás.
No evangelho de Mateus, depois que Pilatos lava as mãos e diz "A responsabilidade é vossa", o "povo" responde: "O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos". Ter o "sangue sobre", segundo ensina Brown, é uma expressão bíblica indicando quem é reponsável por uma morte aos olhos de Deus. A frase é a mais terrível dos evangelhos, no que se refere ao antijudaísmo. Orígenes, no século III, deu o tom de como a frase de Mateus ecoaria séculos afora: "Portanto, o sangue de Jesus derramou-se não só sobre os que existiam naquele tempo, mas também sobre todas as gerações de judeus que se seguiriam, até o fim dos tempos".
Brown reconhece a trilha de preconceito e de tragédias aberta com o tratamento dado aos judeus nas narrativas da paixão. "A observação de que efetivas autoridades judaicas (e algumas multidões de Jerusalém) tiveram um papel na execução de Jesus (...) teve efeitos duráveis." O pensamento cristão, segundo Brown, "chegou atrasado ao reconhecimento de que uma atitude hostil para com os judeus por causa da crucificação é religiosamente injustificável e moralmente repreensível".
O irlandês Crossan considerou insuficientes as justificativas de Brown, e é por isso que escreveu um livro em resposta*. O ponto de partida de Crossan é que Brown tende a aceitar demais a "verossimilhança", ou a "plausibilidade", dos fatos nos evangelhos, sem arriscar contestar-lhes a historicidade. Com isso, endossa uma narrativa da paixão que, diz Crossan, "foi a sementeira do antijudaísmo cristão". Sem esse antijudaísmo, acrescenta, "o letal e genocida anti-semitismo europeu seria impossível, ou pelo menos não tão bem-sucedido". Para Crossan, as narrativas da paixão são peças de ficção. "É bastante possível entender e simpatizar com uma pequena seita judaica sem poderes, escrevendo ficção para se defender. Mas, uma vez que essa seita judaica se torna o Império Romano Cristão, a estratégia defensiva se torna a mais longa das mentiras."
A propósito, se Crossan aceita a historicidade de Jesus, que ele tenha sido preso e crucificado, mas não aceita a historicidade da paixão, o que teria acontecido, então? Simples. Jesus foi preso por promover desordens no Templo e executado sumariamente. Ele escreve: "A eliminação de um estorvo perigoso representado por um camponês como Jesus não precisaria envolver nenhum julgamento oficial nem consultas entre o Templo e as autoridades romanas. O caso foi, a meu ver, administrado de acordo com os procedimentos gerais de manutenção do controle das massas durante a Páscoa. Se alguém causa sério distúrbio no Templo, que se o crucifique imediatamente, como exemplo".

Execução
De que forma era a cruz? Jesus
carregou-a até o alto do Calvário?
Foi pregado ou amarrado a ela?
"Então o crucificaram." É assim, dessa forma econômica e singela, que Marcos dá conta desse momento tão capital da história que vem contando. Mateus escreve: "E após crucificá-lo, repartiram entre si as suas vestes, lançando a sorte". Como nota Brown, a frase que dá conta da crucificação é subordinada à que informa sobre a repartição das vestes. Lucas e João não são mais mais loquazes. "Alguma vez um momento tão crucial foi expresso de maneira tão breve e pouco informativa?", pergunta Brown. Nada é dito sobre o formato da cruz, ou como o condenado foi fixado nela.
A erudição de Brown nos servirá de guia na subida ao Calvário. Os quatro evangelistas informam que, encerrado o julgamento perante Pilatos, Jesus foi levado por soldados romanos para a execução. Versão diferente aparece num texto apócrifo (isto é, não reconhecido pela Igreja), o chamado Evangelho de Pedro, do qual só nos chegou um fragmento, descoberto no século passado no Egito. Nesse texto os judeus têm todo o controle do processo, inclusive a execução do condenado na cruz.
Jesus carregou ele mesmo a cruz? João diz que sim, mas só ele. Os demais relatam que um certo Simão Cirineu, "que passava por ali vindo do campo", segundo Marcos, foi requisitado para fazer o serviço. Brown estranha. O costume impunha que o condenado levasse a cruz ao local da crucificação, o que é atestado pelo historiador Plutarco: "Todo malfeitor que vai para a execução carrega sua própria cruz". A versão de João parece então mais verossímil. A menos, nota Brown, que Jesus estivesse tão debilitado pelos flagelos que lhe foram impostos que não lhe fosse possível suportar o peso.
Mas o peso de quê? O que, exatamente, se carregava? Não era a cruz inteira, informa Brown. Normalmente, a parte vertical ficava fixa no lugar da execução. O que o condenado carregava era a parte horizontal, patibulum em latim. Segundo Lucas, "uma grande multidão do povo" o seguia, inclusive as mulheres a que Jesus se referirá como "filhas de Jerusalém". Brown considera plausível que houvesse gente a segui-lo, com base na cínica observação de outro autor antigo, Luciano, segundo a qual "aqueles que eram levados à cruz (...) tinham um grande número de pessoas em seus calcanhares".
O local da execução é o lugar chamado Gólgota em hebraico ou aramaico, que tem "Calvário" como equivalente latino, ou "Lugar da Caveira", segundo traduzem os quatro evangelhos. O nome indica um monte arredondado na forma de uma caveira, ou crânio. Lá chegados, "então o crucificaram", para retomar Marcos. Mas crucificaram como? Para começar, não há informação precisa sobre a forma da cruz, e ela variava. A palavra "cruz", informa Brown, chegou às línguas modernas com o sentido de uma linha que cruza outra, mas nem o grego stauros nem o latim crux necessariamente têm esse significado. Ambas essas palavras, acrescenta Brown, "referem-se a uma estaca à qual as pessoas podiam ser atadas de várias maneiras: empaladas, penduradas, pregadas ou amarradas". O empalamento produziria uma morte rápida. A crucificação, uma morte lenta.
Originário da Pérsia, o método da crucificação era reservado no Império Romano em princípio às classes baixas, os escravos e os estrangeiros. Há pouca informação sobre ele, na literatura latina ou helenística, e isso se deve, segundo Brown, ao fato de que "os romanos educados o consideravam uma punição bárbara, da qual se devia falar o menos possível". Em qualquer período da História, acrescenta Brown, aqueles que praticam a tortura não são muito comunicativos sobre os detalhes. Para Cícero, era "a mais cruel e revoltante penalidade", que devia ser reservada só para os escravos, e em último caso. "A própria palavra cruz devia não apenas ficar longe do corpo de um cidadão romano, mas também de seus pensamentos, seus olhos e seus ouvidos", escreveu o mesmo autor.
A pena de Jesus não foi de empalamento nem de enforcamento, mas resta saber a forma da cruz e a maneira com que ele foi fixado a ela. A cruz podia ser em forma de "X" ou de "T", além da que normalmente se imagina. O condenado podia ser fixado nela de cabeça para baixo. Ocasionalmente, informa ainda Brown, uma estaca única, vertical, seria utilizada. O condenado seria pregado nela com os braços estendidos para cima. Se Jesus carregou a barra transversal até o local da execução, ou se a carregaram para ele, então é porque não foi crucificado nem na estaca vertical nem na cruz em "X", que ficavam fixas no solo. Era cruz com barra, portanto, mas essas poderiam ser também em forma de "T". Presume-se que não era o caso porque, segundo Mateus, "colocaram acima da sua cabeça, por escrito, o motivo da sua condenação". Isso significaria que sobrava um pedaço de estaca onde colocar a inscrição geralmente representada com a sigla "INRI".
Os evangelhos não informam de maneira direta que Jesus foi pregado. Mas Lucas, ao relatar a aparição aos apóstolos, depois da ressurreição, escreve que ele disse ao incrédulo Tomé: "Vede minhas mãos e meus pés", dando a entender que havia sinais de perfuração. João, mais claro, ao relatar o mesmo episódio, diz que Tomé queria colocar o dedo "no lugar dos cravos". Os pregos não poderiam ter sido aplicados à palma das mãos, no entanto, pois elas se rasgariam. O crucificado tinha de ser pregado à barra transversal pelos pulsos. Feito isso, a barra seria erguida por duas forquilhas até um encaixe talhado na barra vertical.
Jesus foi pregado também pelos pés? Fora dos evangelhos, não havia documento algum a atestar que se pregavam crucificados também pelos pés, até a descoberta, em 1968, em Jerusalém, de um túmulo contendo, entre outros, os ossos de um homem que se aproximava dos 30 anos. Tratava-se de um homem morto por crucificação, e uma crucificação mais ou menos na mesma época de Jesus. Pois esses ossos apresentavam sinais de que o homem fora pregado com dois pregos em baixo, cada prego num calcanhar. Pelos furos, imagina-se que ele foi fixado à cruz com as pernas abertas, cada uma colada a um lado da barra vertical. Os pregos foram-lhe então aplicados no lado do pé, à altura do osso do calcanhar. No caso de Jesus, a tradição atribui a Helena, a mãe do imperador Constantino, a descoberta de três pregos que o teriam pregado - só três. Daí o fato de os artistas ao redor do mundo passarem a representar a crucificação com um prego só prendendo os dois pés, um sobre o outro.
Sobre a cruz, resta acrescentar que algumas apresentavam a variante de ter um pequeno assento, outras um apoio para os pés. Não se tratava de misericórdia. Antes, de permitir que, tendo onde se sustentar, o crucificado durasse mais, e portanto sofresse mais. A inscrição que os evangelhos afirmam ter sido afixada à cruz, com as palavras "O Rei dos Judeus" (Marcos) ou "Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus" (João), é o titulus - uma placa indicando o crime cometido pelo executado. Em nenhum dos evangelhos, nota Brown, sugere-se que se tratasse de zombaria contra Jesus. O titulus, ao informar ao público o crime cometido, reforçava o caráter intimidatório das execuções públicas. Como observa magistralmente Brown, são as únicas palavras que se afirma ter sido escritas sobre Jesus, em sua vida.
"Jesus, então, dando um grande grito, expirou", informa Marcos. Era a hora nona, ou 3 da tarde, e assim esta história vai chegando ao fim. Ou melhor seria dizer: assim começa esta longa história. O que se colecionou nesta parte é apenas uma pequena amostra do torrencial volume de informações do livro de Brown. O que se transcreveu, desde o início, das pesquisas, concordâncias e discordâncias dos três autores citados é apenas uma pequena amostra dos infinitos caminhos a que tem levado o estudo e a reflexão sobre o assunto. Ele é tão vasto quanto o mundo, este assunto, tão vasto quanto a História e quanto qualquer vã filosofia. Só não é tão vasto quanto a fé, que começa com a ressurreição e para a qual nem no controvertido tratamento do povo judeu, nem nas dúvidas históricas, nem em nada, há obstáculo.

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